A leucemia mielóide crónica é uma patologia classificada, segundo a Organização Mundial de Saúde, como uma doença mieloproliferativa crónica.
Também apelidada de mielocítica, mielogénica e granulocítica, é uma patologia mieloproliferativa clonal, correspondente a 15-20% de todas as leucemias.
A incidência é, nos Estados Unidos da América, de 1-1,5/100 000 habitantes por ano, a idade média de diagnóstico é de 53 anos, existe um número discretamente maior de casos no sexo masculino (cerca de três homens para duas mulheres), mas é uma doença que afecta pessoas de qualquer idade e sexo. É, no entanto, rara em crianças menores de 10 anos.
É uma doença hematológica na qual uma célula mãe pluripotencial se torna cancerosa, produzindo um número elevado de granulócitos anormais.
A maioria dos granulócitos leucémicos tem origem na medula óssea. Estes tendem a substituir as células normais da medula óssea, formando, muitas vezes, grandes quantidades de tecido fibroso.
Durante o curso da doença, os granulócitos imaturos penetram cada vez mais na circulação sanguínea. Desenvolvem-se anemia e alterações plaquetárias e a proporção de blastos aumenta bruscamente e de maneira espectacular.
Nas formas mais avançadas da doença podem surgir cloromas (tumores compostos por granulócitos imaturos de reprodução rápida) na pele, nos ossos, no cérebro e nos gânglios linfáticos.
Tal como o nome indica, esta patologia tende a progredir lentamente. Ela é constituída por três fases determinadas pelo número de blastos na circulação sanguínea e na medula óssea e a severidade dos sintomas: fase crónica (a duração desta fase pode ir de alguns meses a vários anos e a maioria dos casos são diagnosticados nesta fase), fase acelerada e fase blástica (também apelidada de fase leucémica e crise blástica).
Na maioria dos casos, nas fases iniciais da doença, os doentes não apresentam sintomatologia e a suspeita do diagnóstico é feita com base nas alterações encontradas num hemograma de rotina.
Os sintomas da leucemia mielóide crónica incluem: astenia, suores nocturnos, pirexia, dor óssea, anorexia, hemorragias frequentes, infecções repetidas, palidez, dispneia, hipertrofia dos gânglios linfáticos.
Para se efectuar o diagnóstico, para além do exame objectivo, onde se pode constatar a presença de esplenomegalia, deve ser realizada biópsia óssea e mielograma.
A existência de leucocitose no sangue periférico, associada à presença de formas jovens, em que estão presentes todas as fases de maturação granulocitária levanta a hipótese de leucemia mielóide crónica. Aumenta também a quantidade de eosinófilos e basófilos e podem observar-se formas imaturas de eritrócitos.É indispensável o estudo citogenético que vai demonstrar a presença do cromossoma Filadélfia. Testes especializados como FISH (fluorescence in situ hybridization) e PCR (polymerase chain reaction) indicam a existência do cromossoma Filadélfia ou do gene BCR-ABL.
Apesar de todos os pacientes de leucemia mielóide crónica evoluírem para agudização, observa-se uma grande heterogeneidade no tempo que se leva a atingi-la, ou seja, na duração da fase crónica.
Figura 1. Biópsia óssea.
Fonte: http://www.mayoclinic.com/
As primeiras descrições de casos de pacientes com leucemia mielóide crónica foram realizadas por John Hughes Bennet em 1845, em Edimburgo e por Robert Wirchow em 1858, em Berlim.
Muitos estudos foram publicados entre 1900 e 1930 com quantidades relativamente grandes de pacientes portadores da doença. A média de sobrevida destes casos era de três anos sem qualquer tratamento, embora houvesse relatos de sobrevida superior a dez.
Por volta de 1930, acreditava-se que o aumento do número de mieloblastos estava relacionado com a morte no final da doença, embora ainda não se falasse em crise blástica. Esta fase dramática foi apelidada de “metamorfose”. Praticamente nada se sabia acerca da etiologia da leucemia mielóide crónica, existiam apenas relatos de alguns casos de exposição ao benzeno e radiações e de trabalhadores da área da saúde expostos ao raio-X, nos anos 20. Até ao lançamento das duas bombas atómicas no Japão: a leucemia mielóide crónica constituiu uma das sequelas hematológicas daquela catástrofe.
No final de 1960, dois cientistas, Nowell e Hungerford, na cidade de Filadélfia, E.U.A., descreveram um cromossoma muito pequeno em células cultivadas a partir de sangue de sete pacientes. Esta descoberta foi prontamente confirmada por outros investigadores e este cromossoma aberrante passou a ser conhecido como cromossoma Filadélfia. Por mais de uma década, foi o único cromossoma anormal directamente relacionado com uma neoplasia específica.
Mais tarde, concluiu-se estar presente em cerca de 95% dos pacientes com LMC e resultar de uma translocação recíproca entre os braços longos dos cromossomas 9 e 22, t(9;22).
Esta troca de material genético vai juntar dois genes: o gene BCR (breakpoint cluster region) do cromossoma 22 e o proto-oncogene ABL (Ableson leukemia virus) do cromossoma 9. O gene híbrido resultante BCR-ABL codifica para uma proteína de fusão com 210 kD, citoplasmática e actividade tirosinacinase aumentada, provocando uma proliferação celular descontrolada.
As tirosinacinases, ligam-se a uma molécula de ATP e promovem a transferência de um fosfato para um resíduo de tirosina existente no substrato. Nas últimas décadas tem sido estabelecido o papel central da BCR-ABL na patogénese da doença.
A sua actividade tirosinacinase promove na célula progenitora hematopoética e sua descendência um aumento descontrolado da proliferação celular, uma diminuição da adesividade das células leucémicas ao estroma da medula óssea e a redução na resposta à apoptose, o que resulta numa vantagem de crescimento e sobrevida nas células portadoras relativamente às normais, estabelecendo-se, assim, progressivamente, a clínica da leucemia mielóide crónica.
Figura 3. Fusão dos genes BCR-ABL com consequente produção da proteína BCR-ABL, com actividade tirosinacinase alterada.
Fonte: http://www.mayoclinic.com/
Face às evidências de que bastava a presença do gene BCR-ABL para se desenvolver leucemia mielóide crónica foram criadas condições para o desenvolvimento de uma terapia alvo que proporcionariam mudanças radicais no tratamento desta patologia e um novo paradigma na terapia de um grande número de neoplasias.
A partir dos anos noventa, vários investigadores iniciaram projectos para a síntese de pequenas moléculas, capazes de inibirem a actividade tirosinacinase da proteína BCR-ABL, através da competição na ocupação do sítio de ligação do ATP, no domínio cinase BCR-ABL.
Surgiu, assim, uma nova família de fármacos: os Inibidores das Tirosinacinases.
O imatinib, um inibidor específico da BCR-ABL tirosinacinase, foi introduzido no mercado em 2001 e veio revolucionar o tratamento dos pacientes com leucemia mielóide crónica.
O seu aparecimento veio permitir remissões citogenéticas superiores a qualquer outro medicamento até então utilizado e o aumento da progressão livre de doença.
O imatinib inibe potentemente a tirosinacinase BCR-ABL aos níveis in vitro, celular e in vivo. O composto ocupa o local de ligação do ATP nas moléculas de tirosinacinase e previne a fosforilação de substratos envolvidos na regulação do ciclo celular. Deste modo, inibe selectivamente a proliferação e induz a apoptose nas linhagens celulares BCR-ABL positivas bem como em células leucémicas frescas de doentes com leucemia positiva para o cromossoma Filadélfia.
O imatinib tornou-se no fármaco de primeira escolha no tratamento desta patologia, principalmente na fase crónica, graças à elevada eficácia, baixa toxicidade e capacidade de manter a resposta hematológica e citogenética.
Figura 5: Mecanismo de acção do imatinib.
Fonte: http://www.mayoclinic.com/
Porém, e apesar dos notáveis resultados alcançados com esta droga, a emergência de resistências a este inibidor da tirosinacinase transformou-se num grave problema.
Verifica-se que uma percentagem de doentes, principalmente nas fases mais avançadas, apresenta refractariedade no início da terapêutica ou perda de sensibilidade ao fármaco e evolução para recaída. Pensa-se que a causa mais comum das resistências observadas se deve à proliferação de clones leucémicos com mutações pontuais no domínio ABL. Daqui resultam alterações dos aminoácidos no local de ligação do fármaco à proteína, impedindo a sua acção. Outros mecanismos de resistência incluem a superprodução de BCR-ABL devido a amplificação genómica, aberrações citogenéticas adquiridas e surgimento de fenómenos de efluxo do fármaco.
Outras opções terapêuticas foram investigadas e assim surgiram os inibidores das tirosinacinases de segunda geração, o dasatinib e o nilotinib.
Com estes novos agentes, pacientes que desenvolveram resistências ou não toleram o tratamento com imatinib podem alcançar respostas clínicas muito significativas.
O dasatinib foi introduzido no mercado português em Novembro de 2006.
Enquanto que o imatinib se liga à tirosinacinase BCR-ABL apenas quando esta se encontra numa forma inactiva, o dasatinib une-se à enzima tanto na forma activa como inactiva.
O dasatinib é considerado cerca de trezentas vezes mais potente do que o imatinib e ao ligar-se a diferentes conformações da enzima torna-se capaz de inibir a proliferação de células que, devido a mutações, se tornaram resistentes a este fármaco.
O nilotinib é, também, um inibidor da tirosinacinase de segunda geração, já comercializado em Portugal desde Novembro de 2007. É um análogo do imatinib desenhado com o objectivo de se ligar mais especificamente e com uma capacidade inibitória da BCR-ABL superior. Embora também se ligue à conformação inactiva do domínio cinase ABL, é considerado cerca de 25 vezes mais potente do que o imatinib e foi aprovado para o tratamento de pacientes resistentes ou intolerantes a este fármaco.
Estudos indicam que o nilotinib pode ser utilizado com sucesso em pacientes que não respondem ao dasatinib.
Em meados de 2008, o bosutinib, um agente ainda em estudo, demonstrou eficácia e tolerabilidade aceitável em pacientes com leucemia mielóide crónica resistentes ou intolerantes ao imatinib ou aos inibidores da tirosinacinase de segunda geração. Este fármaco é um derivado sintético das quinolonas e ao que tudo indica tornar-se-á o terceiro inibidor da tirosinacinase de segunda geração a surgir no mercado.
Entretanto, outras estratégias de acção estão a ser estudadas, como é o caso da inibição competitiva do substrato peptídico, em detrimento do local de ligação ao ATP.
As vias de sinalização são também alvos terapêuticos interessantes que se pensa poderem vir a ser utilizados em conjunto com a inibição da tirosinacinase.
Novas formas de tratamento desta doença poderão também passar por uma terapêutica baseada na combinação de vários fármacos, de modo a combater possíveis resistências.
Finalmente, vacinas contra a leucemia mielóide crónica, contendo peptídeos da proteína BCR-ABL, poderão desempenhar um importante papel no futuro, combinadas com outras terapias. Há, no entanto, ainda, um longo caminho a percorrer.
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